segunda-feira, 5 de abril de 2010

Porta

Aqui fica um pequeno texto de um livro que li e que gostei imenso.


"Levar com a porta na cara dói muito. Dói sempre, o dia inteiro, a todas as horas e a todos os minutos. Dói tanto que os segundos se podem tornar insuportáveis e os dias facilmente se transformam em epopeias, viagens trágico-maritimas. Dói de manhã, assim que regressamos do abençoado estado de inconsciência em que o sono nos guarda, quando olhamos para o lado e perguntamos: e agora? Dói quando olhamos para o espelho embaciado onde existem os fantasmas de frases de amor escritas com a ponta dos dedos. Dói quando nos lavamos, quando comemos, quando engolimos, quando respiramos, quando falamos, quando ouvimos, quando pensamos. Dói um bocadinho menos quando nos rimos, quando os amigos nos abraçam, quando a noite cai e os filhos nos protegem. Mas o que mais dói é saber que alguém que ainda gostamos, por medo e por sofrimento, nos fechou o coração. O som é igual ao de mil tambores em fúria e não vale a pena falar, não vale a pena escrever, não vale a pena tentar chegar ao outro lado, saltar o muro, enviar emissários, içar bandeiras, fazer cimeiras, apanhar aviões e levar na mão o nosso coração como presente porque ele já não o quer. Quando o outro coração se fecha, deixa de ser nosso. E quando o homem fica surdo do coração, como é muito mais prático do que uma mulher, em vez de chorar e lamber as feridas, oferece-o a outra mulher. Os homens têm uma existência infinitamente mais leve, confundem desejo com amor. As mulheres não têm a mesma sorte. Os homens sabem como encontrar soluções fáceis para todas as questões e muito poucos têm a coragem de Rilke, que sempre preferiu as soluções dificeis porque acreditara que é no dificil que tudo cabe. Mas não consta que fosse surdo, nem do coração nem do resto."

Margarida Rebelo Pinto

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